A Guitarra Portuguesa

Quase todos os países do mundo têm uma Guitarra, o que quer dizer que a palavra "guitarra" não identifica um instrumento musical. Daí, a importância da nomenclatura aplicada, à língua do país de origem do instrumento. Em Portugal a palavra "GUITARRA" é aplicada a vários tipos de instrumentos. Uma Guitarra de Fado ( mas qual... Porto, Lisboa ou Coimbra ), uma Guitarra Eléctrica, uma Guitarra Clássica, quando na realidade o nome atribuído a um instrumento musical tem a ver com a sua estrutura ,número de cordas, país de origem e acima de tudo com a língua que está a ser usada para identificar o instrumento em questão. Mas como é possível estabelecer normas num país, onde as mesmas ainda não foram criadas?

Não sou portador da verdade, mas os 45 anos dedicados à investigação dos Cordofones portugueses, dão-me o direito de ter uma opinião formada sobre este assunto. Daí que em Portugal, a palavra guitarra deve ser unicamente aplicada à Guitarra de Portuguesa ( Porto, Lisboa e Coimbra ) e a palavra viola, a um outro instrumento, com uma caixa acústica em forma de oito. Na minha opinião em vez de "Guitarra Clássica" devia ser Viola Dedilhada , para não confundir com a Viola de Arco, ou simplesmente Violão. A palavra Violão é de grande utilidade para distinguir o instrumento de 6 cordas, das Viola de Arame portuguesas ( Amarantina, Braguesa, Toeira, Beiroa, Campaniça, Arame da Madeira, da Terra S. Miguel Açores e de 15 e 18 cordas da Terceira Açores ).

Tudo leva a crer que o parente mais próximo da Guitarra Portuguesa, tenha sido o Cistre (não confundir com Sistro, tipo de chincalhos em forma de forquilha) que aparece na barra da cidade do Porto, por volta do século XVIII. O mestre de capela do Porto, António da Silva Leite (1.759-1.833), ao verificar o entusiasmo crescente por este instrumento, nacionaliza-o dando-lhe o nome de Guitarra Portuguesa. Escreveu na época um método para tocar este instrumento ( ESTUDO DE GUITARRA EM QUE SE EXPÕEM O MEIO MAIS FACIL PARA APRENDER A TOCAR ESTE INSTRUMENTO), livro este que foi dedicado a D. Antónia Magdalena de Quadros e Sousa, Senhora de Tavares, publicado em 15 de Março de 1796 pelo preço de 1.200 reis.

A Guitarra de Silva Leite tinha 10 cordas com 6 ordens (as duas últimas ordens eram singelas) ao contrário da actual Guitarra que tem 12 cordas distribuídas por 6 ordens. Sendo dada a afinação dos Cordofones do agudo para o grave, a Guitarra de Silva Leite afinava:

1ª ordem (2 cordas) em Sol, 2ª ordem (2 cordas) em Mi, 3ª ordem (2 cordas) em Dó, 4ª ordem (2 cordas) em Sol, 5ª ordem (1 corda bordão) em Mi e a 6ª ordem (1 corda bordão) em Dó.

Ainda salientando alguns pormenores da Guitarra de Silva Leite, a Boca ou Abertura Musical era tapada com um Rosácea e o Leque (sistema de afinação) era de chave de relógio.

Como curiosidade, a invenção do "Leque" é atribuída a um inglês chamado Simpson. Como é lógico é possível fazer outras conjecturas sobre a origem da Guitarra Portuguesa.

A Península sofre várias invasões de povos que trazem na sua bagagem vários instrumentos musicais. As mais importantes são: 218 a.C. invasões romanas (a Lira), 409 d.C. invasões Germânicas (a Harpa, a Lira, a Cítara, o Crota) e em 711d.C. as invasões Árabes (Fidícula, Tambur, Rabab, etc.). No entanto, tendo em conta o estudo feito por vários investigadores, as primeiras Guitarras construídas em Portugal, na viragem do século XVIII para o XIX, são feitas por Luís Cardoso Soares Sevilhano que, no entender de Silva Leite, era um bom construtor, João José de Sousa (Lisboa) e Domingos José de Araújo de Braga.

Como nota de curiosidade, existem registos de que em Portugal no século XVIII existiram, 7 Violeiros, 3 Guitarreiros, 2 construtores de instrumentos de sopro, 7 de Pianos e Cravos e 9 Organeiros.

Na primeira metade do século XIX existem 14 "Guitareiros" e na segunda metade mais de 30.

As Guitarras Portuguesas são construídas em diversos locais, dando origem a 3 escolas de construtores. A Guitarra do Porto, com uma caixa acústica de menor dimensão e uma "Voluta" terminando em cabeça humana de animal ou flor, a Guitarra de Lisboa, com uma maior caixa de ressonância e uma Voluta em caracol e finalmente a Escola de Coimbra, com uma escala maior, afinando um tom abaixo da de Lisboa e Voluta em lágrima. A escola do Porto, que fabricava Guitarras mais pequenas, perdeu adeptos e está praticamente extinta, só se fabricando por encomenda. Estas Guitarras eram muito tocadas por senhoras que a trocaram pelo Piano e como é lógico... falar francês. Hoje em dia existem dois tipos de Guitarras com características de construção, afinação, calibres de cordas e técnicas de tocar completamente distintas. Apesar de ultimamente terem aparecido Guitarras híbridas, isto é, não são de Lisboa nem de Coimbra, para o observador pouco conhecedor do assunto, pode distingui-las pela observação da sua parte exterior.

A Guitarra de Lisboa tem uma Voluta em "caracol", uma caixa acústica mais arredondada, embutidos em madrepérola, "guarda-unhas" forrado a plástico que emita madrepérola e aquilo que não se vê; uma escala de 440 mm de comprimento (Tiro de Corda), usando cordas com os seguintes calibres: 1ª ordem Si - aço de 0,23 mm, 2ª ordem – aço de 0,25 mm, 3ª ordem Mi – aço de 0,33 mm, 4ª ordem Si (bordão de 0,48 mm e aço de 0,23 mm), 5ª ordem – (bordão de 0,65 mm e aço de 0,25 mm) e a 6ª ordem – 2 bordões, um de 0,88 mm e outro de 0,48 mm. Como a escala da Guitarra de Coimbra é maior (escala de 452 mm de comprimento) a afinação é diferente. Do agudo para o grave: Lá, Sol, Ré, Lá, Sol, Dó. Deste modo é necessário alterar também a tensão das cordas, utilizando calibres mais grossos. O aço utilizado é respectivamente : 0,25 mm para o Lá, 0,30 mm para o Sol e 0,36 mm para o Ré. Embora ambas utilizem os mesmos bordões, existem à venda bordões apropriados para a Guitarra de Coimbra. Outros pormenores da Guitarra de Coimbra são: Voluta em lágrima preta, "guarda-unhas" em madeira preta (Ébano) e não tem enfeites de madrepérola mas sim em madeira.

Tudo leva a crer, que terá sido da grande relação de amizade de Artur Paredes (pai de Carlos Paredes) com o construtor João Pedro Grácio Júnior, que nasceu este instrumento, na tentativa de modificar a Guitarra de Lisboa dando-lhe uma sonoridade mais toeira para combinar melhor com a "Canção de Coimbra". Já agora a talho de foice, não chamem Fado à balada Coimbrã!

Voltando às origens deste instrumento, hoje em dia a Guitarra Portuguesa é fruto do trabalho de vários construtores de parceria com guitarristas, que lhe deram uma sonoridade impar apreciada em quase todo o mundo. Digo quase, porque em Portugal não o é, senão todos os nossos conservatórios teriam professores deste instrumento, os construtores não necessitavam de encomendar madeiras e outros acessórios do estrangeiro, fazia parte dos livros de música do ensino escolar obrigatório, a nossa rádio e televisão davam-lhe o devido destaque e os grandes construtores deste instrumento teriam apoios dos nossos governantes, no sentido de dar continuidade a esta arte que parece estar condenada a desaparecer. Embora existam muitos novos construtores deste instrumento, a sua consagração ainda não foi conseguida devido à sua pouca divulgação. Se duvida desta minha afirmação pode fazer um teste muito simples. Pergunte aos guitarristas profissionais, quem foi o construtor do instrumento que utilizam na sua profissão. A escola de transmissão de conhecimentos é muito importante. Um exemplo desta afirmação é a utilização da expressão "sucessor" que aparece nos rótulos dos instrumentos. Assim, quando alguém aprende a arte com um Mestre, não recebe um diploma mas sim o direito de utilização do respectivo nome. Belmiro dos Santos, sucessor de João Pedro Grácio, Artur Babosa, sucessor de João Cerqueira, Manuel Pereira, sucesor de M. C. Teixeira, etc..

Gostaria de fazer um destaque especial a um construtor, que na minha opinião, mais contribuiu para a grande sonoridade que a Guitarra Portuguesa tem hoje em dia.

Álvaro M. da Silveira, que nasceu no Funchal em 1883. Tinha a sua Oficina em Lisboa na travessa das Inglezinhas, mas aprendeu a sua arte na Madeira (Funchal) com o construtor de violinos Augusto da Costa. Estudou em Cremona (Itália) a construção de violinos e adaptou as técnicas aprendidas ao estudo da caixa de ressonância da Guitarra Portuguesa. A colocação exacta das travessa no tampo da Guitarra Portuguesa, pode fazer a diferença entre uma boa ou má sonoridade deste instrumento. Mas a ele são atribuídos outros estudos como o encaixe do braço, o diâmetro da boca ou abertura musical, as espessuras das madeiras e o fabrico de goma laca para envernizar.

Mas uma boa Guitarra necessita sempre de um bom Guitarrista. Uma singela homenagem para 3 homens que deram um contributo especial à Guitarra Portuguesa: Armandinho, Jaime Santos e José Nunes.

Armando Augusto Freire (Armandinho), nasceu em Lisboa no ano de 1891. Faleceu em 1946 e começou a tocar Guitarra com 12 anos. O primeiro fado que fez foi o "Fado Armandinho" em 1910.

Jaime Tiago dos Santos (Jaime Santos), nasceu em 1909 em Lisboa e faleceu a 4 de Julho de 1982. Aos 12 anos tocava Viola e Bandolim mas na arte da Guitarra deu os primeiros passos com o avô Manuel dos Santos (Manuel Jardineiro) que tocava Guitarra e cantava o Fado.

José Nunes Alves da Costa (José Nunes), nasce no Porto na freguesia de Paranhos em 1916. Aos 4 anos perdeu o pai e aos 8 anos vem para Lisboa estudar nos Pupilos do Exército. Com 14 anos já tocava Guitarra e entrou no filme " Lavadeiras de Caneças".

Assim as técnicas de Silva Leite há muito foram ultrapassadas por outras técnicas, que Guitarristas e estudiosos as copilaram em livros.

De salientar o Método de João Maria dos Anjos (1865-1889), professor de Guitarra do Rei D. Carlos, que organizou um sexteto famoso, constituído pelos seguintes músicos: na Guitarra, João Maria dos Anjos, Luís Cardoso da Silva (Petrolino), João da Preta e Augusto Pinto de Araújo (o Camões), na Viola, António Eloy Cardoso e José Maria Uriceira. Outros métodos importantes foram escritos como o de César das Neves (Methodo Elementar de Guitarra / Porto 1904), Reynaldo Varela (Lisboa 1906), J. Tetus (Lisboa / Casa Valentim de Carvalho), João Victória (Guitarra sem Mestre), Salgado do Carmo (Método Elementar de Guitarra Portuguesa), etc..

A Guitarra Portuguesa já teve várias afinações depois da utilizada por Silva Leite.

As afinações são dadas do agudo para o grave.

Afinação Natural – Si, Sol, Mi, Si, Sol, Mi (usada por João Maria dos Anjos).

Afinação Mouraria – Si, Sol, Mi, Si, Lá, Mi.

Afinação de Fado ou de Corrido – Si, Lá, Mi, Si, Lá, Ré.

Afinação de Coimbra – Lá, Sol, Ré, Lá, Sol, Dó.

Como curiosidade, não sei se sabe como apareceram as notas musicais. A sua invenção é atribuída a um monge Beneditino, Guido d´Arezzo, que utilizou para a sua criação as primeiras sílabas de um Hino dedicado a S. João Baptista. Na época o Dó era conhecido por Ut.

Quase tudo ficou por dizer, mas para os mais curiosos deixo alguns livros que devem consultar.

Declaration de Instrumentos Musicalles / Frei Juan Bernudo (1555)

Nova Arte da Viola / Paixão Ribeiro (Coimbra 1789)

História do Fado / Pinto de Carvalho

A Triste Canção do Sul / Alberto Pimentel

Fado origens líricas motivações poéticas / Mascarenhas Barreto

A Guitarra bosquejo histórico / Armando Simões (Lisboa 1974)

Lisboa o Fado e os Fadistas / Eduardo Sucena

Guitarra Portuguesa / Paulo Soares

Faltam cerca de 80 livros, mas para começar, já vão estar entretidos nos próximos anos. Não foram referidos, por não serem menos importantes, mas sim por um processo de escolha pessoal.

Se for mesmo muito curioso ou não concorda com as minhas afirmações, deixo-lhe o meu correio electrónico jose-lucio@netcabo.pt para que possamos discutir estes assuntos pessoalmente e corrigir os erros ou gralhas daquilo que escrevi. Da diferença nascerá a verdade dos factos. Todos é que sabemos tudo.

Este ano, se puder, aprenda a tocar Guitarra Portuguesa e não deixe de aumentar a sua colecção de CDS, com boas guitarradas.

José Lúcio Ribeiro de Almeida

 

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